martes, 27 de enero de 2009

Surdina

Estranho! mas está anotado mi nosso caderno deviagem. pela primeira vez, onze dias depois de chegarmos ao Japão, ouvimos música nipônica. Durante nossa estada de trinta dias. não a ouvimos mais que seis vezes. Por que? Não conseguimos apurar. O que por toda pane chegava aos nossos ouvidos era a chamada "música de elevador", na sua quase totalidade os clássicos românticos do século XIX. XVIII ou antes. Haydn, Brahms, Beethoven, Chopin, Bach. E muitos outros. por onde andaria a musica japonesa?

O período que passamos no Japão coincidiu com iasc adiantada da enfermidade de Hirohito, quando uma multidão, em Tokyo, ia ao parque imperial, para lá, sob imensos toldos, deixar com suas assinaturas seus votos de restabelecimento ao imperador. Como deixamos os nossos. Queriam alguns que a vida continuasse como sempre. Outros que se observassem o respeito e o pesar por seu drama final, prolongado por meses. Muitos espetáculos e cerimônias foram suspensos. Festivais populares milenares do shintoísmo, os matsuri, que a cada dia estão acontecendo em algum lugar do Japão, foram cancelados. Não encontramos um, em nosso mès de viagem.

A vida continuava — com uma discrição que talvez não se acharia em outras ocasiões. Faria parte dessa surdina o silêncio da música nipônica?

Não temos explicação. Não conseguimos apurar por que só a ouvimos seis vezes em trinta dias. leria ela, como outras coisas tradicionais, se recolhido:-1 ou como tantas outras coisas, sem desaparecer, passou definitivamente a uni segundo plano cultural? Não cremos. Mas não conseguimos apurar esse silencio estranho.

martes, 20 de enero de 2009

Dois pólos teatrais

Viagens são como banquetes para a sensibilidade e a inteligência. Com a diferença de que nos banquetes antigos se podia dispor de dias para apreciar os requintes, e nas viagens de hoje freqüeutemente se tem de compactar a apreciação de séculos cm poucas horas.



Dada a ambição de nosso programa, memos de reduzir a poucas horas nosso encontro com o Nôh e o Kabuki, dois pólos clássicos do teatro japonês que guardam religiosamente suas características tradicionais. Aquele, exprimindo o máximo de economia de recursos; este, esgotando toda a exuberância de expressões. Sc ao Nôh cabe a designação de "missa japonesa", ao Kabuki se poderia chamar tie autêntica farra nipòni-ca. Ambos insuperáveis em seu estilo, com aquele sc entra em comunhão mística; neste, tivemos de enxugar gotas de um mar-de-mentira que um nadador estabanado propositadamente borrirava do palco sobre a platéia.
Na arquitetura, instalações e tudo mais, permanece o contraste. Há no Kabukiza de Tokyo um completo bazar de souve-nirs, comidas, uma quase quermesse popular. No prédio do Nòli, discretas vitrinas e balcões, como de joalheria.

O programa não nos permitia mais tie uma hora cm cada casa, quando um espetáculo completo é um seriado de vários dias. Etretanto, a compactação é possível, tal a força de impacto dos lugares e seus espetáculos.

A simples arquitetura do teatro Noh é uma lembrança in delevel Impossível alcançar-se com tanta sobriedade tanta majestade tranqüila. Há uma grandeza de palácio e uma paz de templo em seus imensos e despojados vcstíbulos e espaços de circulação. Mal cruzamos suas portas e nos envolve seu pathos, somos insensivelmente levados ao silencio, ao recolhimento, e transportados para a íntemporalidade. Não me recordo de outro interior capaz de falar tanto com sua mudez, envolvente. Lembrei-me da catedral de Colônia e da abadia de Westminster em Londres — mas com o eleito oposto de que o "além" nipònico e luminoso, e não sombrio.

Do Kabukiza se sai rindo ou chorando, dependendo da peça, porque lá tudo pode acontecer. Bastam os erros e gafes involuntários, que disparam sereias, para nós inaudíveis, mas que transformam os japoneses em enfermeiros ou bombeiros correndo em nosso pronto-socorro para restabelecer a ordem devida e repor tudo em seu respectivo lugar.

miércoles, 14 de enero de 2009

Onde passado e presente tateiam caminhos futuros

Nossa viagem ao Japão leve a duração de um mês: ce 30 de setembro a 30 de outubro de 1988. Percorremos 13.000 quilômetros. 4O.OOO de avião, ida-e-volta. e 3.000 no próprio Japão, de trem, limusine. ônibus, mono-rail, metrò, barco. au-lomóvel e avião. De Narita fomos a Tokyo, Tsukuba,Usonomiya, Mashiko. Toba, Isc. Kyoto, Nara, Kobe, Osaka, Himeji, Kuma-moto. Mijazaki. Mimitsu chõ, e daí de volta para Tokyo, o que corresponde a cruzar cerca de metade do Japão, do centro de Honshu, a maior ilha, ao sul de Kyushu. na extremidacJe do arquipélago principal. Cruzar meio Japão fica pertinho; em ho ra e meia se vai de avião do extremo sul a Tokyo.

Nessa maratona de trinta dias, das sete da manhã ás sele da noite, sempre com horãrios cravados em minutos, estivemos em quinze localidades de onze províncias (estados! diferentes, visitamos cerca de cinqüenta organizações, instituições, associacões, empresas, centros de pesquisa, escolas, castelos, templos, parques, santuários, museus c residências. Pronunciamos três conferências e trouxemos de- volta quarenta quilos de documentação... além de 86 meisbi (cartões de visita) de pessoas com as quais tivemos contato direto: governadores de províncias, prefeitos, funcionários de primeira linha, diplomatas, sacerdotes, empresários, executivos, professores, estu dantes, donas de casa — homens e mulheres, jovens e crianças. O que andamos a pé, se tivesse sido sempre para a frente, poderia nos ter trazido de volta ao Brasil; os degraus de escadas que subimos dariam para chegar ao céu...

Não obstante, voltamos são e salvos, com uma bagagem de sensações, impressões, idéias e cogitações que nos acompanharão daqui para a frente como unia das mais ricas, belas e emocionantes experiências de toda a nossa vida. Diziam os antigos: vedere Napoli e poi morire. Uma das primeiras anotações em nossa caderneta de viagem registra: vir o Japão, antes de morrer.

Havíamos nos preparado para isso. Durante oito anos. antes de nossa viagem, estudamos o Japão sob todos seus aspectos históricos e culturais. fascinantc aventura intelectual que reunimos em Japão — A Harmonia doa contrarios — Uma experiencia humana singular, livro publicado um junho de 1988 pela T. A. Queiroz. Essa preparação nos manteve alerta para cada aspecto, fato, pessoa, informação e detalhe que desfilaram diante de nossos olhos no decorrer dessa velocissima e magní fica viagem: desde o caipim susuki, acenando suas pluma, ao longo das estradas, ao momiji, trocando por ouro e purpura suas folhas no prenuncio do outono; da magnílica exposição do museu de Utsonomiyaa, ond fizemos o emocionante emcontro com originais de quadros, estatuetas, pergaminhos makimono e objetos do decisivo período Momoyama, quando se realizou a unidade do país (tínhamos a nossa frente o nascimento do Japão!) até o jovial e estimulante envolvimento com os enxames de colegiais, crianças e jovens, que nessa época viajam por todo o pais a fim de conhece-lo .

Tudo nos foi extremamente facilitado por termos sido convidados pela rundacão Japão, órgão cultural do governo japonês, que preparou nosso programa dos quince primeiro-, dias. organizando os contatos c pondo ã nossa disposição excelentes guias e interpretes Na segunda quinzena fomos cicero-neados por Yanianmto Katsuzo, empresário nipo brasileiro, com ampla rede de contains no Japão, que viajo para nos acompanhar e mostrar-nos a mim e a minha mulher (por sua conta!) sua terra natal. Seria impossível encontrar um companheiro de viagem mais generoso, mais ativo, mais alerta, mais amigo e — sobretudo — mais alegre

Tendo procurado em nosso primeiro livro encontrar e expor as raízes histórico-culturais que explicam o Japão de hoje. levávamos o ambicioso projeto de, nesta viagem, começar a tolher material que nos permitisse escrever um segundo, o Ja pão em marcha para o século de que as duas panes deste livro constituem um primeiro e rápido esboço. Ai de nós! de certa forma c mais fácil viajar intelectualmente pelo passado e chegar ao presente- do que, percorrendo fisicamente o presente, vislumbrar o futuro. Os materiais csião todos aqui. mas, onde o tempo e as condições para a fanlastica concentração e massa de trabalho necessários á concretização do projeto?
Passado e presente, tradição e modernidade, o começo dos tempos e resolutas im tirsões pelo terceiro milênio, coexis-tem no Japão. Talvez em nenhum outro lugar deste planeta se possa comviver simultaneamente com essa mescla desconcei-tante de uma remota antigüidade que conserva uma perpetua juventude com inovações tao atreviddas que tem o ar marcia-no de embriões saídos de livros de ficção cientifica. Talvez em nenhum outro pais do mundo se possa sentir mais intensa mente o fluxo e o reíluxo das décadas de transição em que vi vemos, onde o homem ensaia a superação de uma história vivida, fin busca das novas formas de um mundo ignorado. Co-mo no resto do mundo, o pêndulo japonès parece aproximar-se de seu momento neutro, em busca dc novo impulso para umavita nuova. Talvez cm nenhuma outra parte se possa sentir tom maior tensão e nitidez a problemática do presente e a febril e jovial alegria da criação de novas soluções.

Nossa viagem pelo Japão tev, aissim, o semido de uma dupla incursão pelo tempo, retrospectiva e prospicliva, uma simultânea i iagcnt de romântica recaperação do pasmado e de axenturos.i expedição pelo futuro

São as impressões e reflexões despertadas por essa ca-minhada que procuramos, neste blog, transmitir aos nossos leitores.