lunes, 23 de febrero de 2009

No encalço das ama

Quem já não ouviu falar das ama, as pescadoras de perolas, mergulhadoras extraordinarias que isoladas em ilhas remotas. na comunidade de pequenas aldeias, vivem a pobreza aventurosa, romantica e lotérica de arrebatar joias que as ostras escondem no fundo dos oceanos?

De Toba, talvez o mais aristocratico centro de lazer do Japão, fomos de carro, por estrada asfaltada, ha poucos anos recortada no flanco das montanhas, ao encontro da ilha das Pe-rolas. Inesquecivel trajeto.

Do continente (ou melhor, da ilha de Honshu) se cruza o braço de mar para a "Mikimoto Pearl Island" por uma passare-la-toldo de seus 200/300 metros. carpetada no piso, envidraça-da nos lados... depois de se comprar um ingresso e atravessar uma borboleta. Chega-se a um patio apedriscado, rodeado dc incaracterísticas construçoes ultramodernas, onde se destaca sobre um pedestal uma estatua de bronze de Kokichi Mikimoto, o inventor do processo dc cultivar pérolas.

A ilhia das Pérolas é um ilhote inteiramente urbanizado e ajardinado. que se abarca com a vista e mais parece simples ancoradouro. Procura-se para cá e para lá e chega-se a um salão enormc, onde, sentado em poltronas de vime, se olha o mar encostado as lundaçoes. De um pequeno balção a atenden-le nos pergunta em que língua desejamos ouvir a explicação do show das ama: inglês, trancês, espanhol, alemão, russo... — ou chinês?

— Show?

Faltavam 10 para as 4. As quatro em ponto, um barco cabinado e envidraçado se aproxima. Para a uns cinco metros de onde estamos. As ama, com suas camisolas brancas e óculos de mergulho, lançam ao mar seus cestos. Saltam, meia-dúzia delas, para o mar. Mergulham. Voltam a superficie, lançam nos cestos as ostras que colheram. Assobiam, tomam fôlego, voltam a mergulhar. Dez minutos após encerra-se o show, sobem de volta ao barco. Podemos reencontrá-las a saída, sob um rancho envidraeado, com camisolas brancas secas, trocadas, onde se acham a disposição para se deixarem fotografar com "os turistas".

Decepcionante? Não. Pior que isso. Mistificante. Das ama não sobrou senão o assobio pungente e nostálgico — "elegia do mar" — com que reequilibram o fôlego e, se diz, imploram graças aos deuses.

A saída. dirigimo-nos a um coffee-sbop. Continuamos de olhos arregalados. E sob nossos olhos, a jovero que nos prepa-ra um express tem nos sens gestos a precisão, a graça, a delicadeza de quem oficia uma cerimônia do chá.

Não. O Japão não se desniponizou. Continua, nos assobios das ama e na graça das garçonetes, para quem tenha olhos para ver e ouvidos para ouvir.

lunes, 16 de febrero de 2009

Rotina, tédio e exaltação

Alguma coisa me irritou no Japão? Sim. Os audiovisuais a que eramos disciplinadamente submetidos nas visitas a maioria dos orgaos públicos e empresas particulares. Não ha conversa pessoal antes disso, talvez porque recebendo tantas visitas os japoneses ja estejam enfarados de repetir as mesmas respos tas gerais as mesnias perguntas gerais. Eles se enfararam antes de nós. Daí o enlatado dos audiovisuais. Depois se pergunta-rá tudo o que se quiser, pelo tempo que se quiser.

"— Practico, né?

Inegavelmente. Entretanto, há uma insoportavel monotonia nessas apreseniaçoes saturadas de comunicologia. como se elas tivessem sido produzidas em serie, a partir do mesmo script, e fossem manufaturadas pela mesma empresa ou organização, não importa para que orgão ou empresa.



De toda a ameneanização do Japão, esta foi a mais enjoativa. De toda a niponização que permanece, como testemunho da insuperavel hospitalidade japonesa, o que mais nos tocou foi enntrar na maioria das nossas visitas a entidades publicas e empresas privadas a bandeira brasileira hasteada nos mastros e presente nas salas em que fomos recebidos.

domingo, 15 de febrero de 2009

O resfriado brasileiro

Uma preocupação universal dos japoneses era com a divi-da externa e a inflação brasileiras. Violando a tradicional dis-crção niponica, sem infringir, contudo, sua proverbial corte-sia, não resistiram a oportunidade de nos interrogar para saber.

Acontecen na sede da prefeitura de Utsonomiya, onde fomos, minha mulher e eu. distinguidos com o título de cida dãos honorarios e cumulados de delicados presentcs. Voltou a repetir-se na Facultade de Estudos Estrangeiros da Universidade de Kyoto, onde fizemos uma conferencia sobre nosso pais.

Tinhamos que condensar a resposta em poucos minutos. Para uma economia madura e pletórica, isto, de fato, seria uma molestia mortal; para uma economia de espaços continentals, que ainda engatinhava, com todos os recursos e oportunidades a serem explorados, isto era como uma doença infantil, constipação, resfriado, ou sarampo. No dia seguinte a frase era cabeçalho de noticia do Kyoto Shimbum: "Dívida externa e uma gripe de moço gigante."

Muito mais complicado era explicar como o brasileiro con-seguia sobreviver com uma inflação de 20% ao mes e uma ren-da per capita anual de US$ 2.000, num pais (o Japão) cuja inflação anual é de 2% e a renda per capita de USS 23,000, a maior do numdo, depois da Suiça.

miércoles, 11 de febrero de 2009

"Dômo", "Dôzo"

De leituras, já conheciamos a tolerància e benevolència inesgotáveis do japones para com os bebados e os pobres de espirito. Tudo lhes e relevado. Sao aceitos ajudados. Natural-mente. Sem manifestaçao dc do, sem desprezo, sem comiseração, sem impacència. Com solicitude e até ternura — parece — para com esses que viajam pelas altas planuras...

Na Ginza, noite alta, um executivo, com sen impecavel uniforme de banqueiro, dispara pela calcada emitindo urros de guerra de samurai, seguido solicitamente por mais tres "banqueiros". sua guarda tutelar. Numa boate assistimos a operação de traslado de uma fieira de bebados, carinhosamente comboiados para os elevadores.

Levamos contudo algum tempo para compreender, mais que a paciência, a atenção afeuosa com que, naquiela terra onde não se para para nada e nao se perde um minuto, nossos dois acompanhantes japoneses se detiveram por interminaveis minutos para ouvir e obedecer as sugestoes de um fotografo ambulante que se intitulava "embaixador dos estrangeiros no Japão", exibia suas credenciais, ditava instruçoes, punha-nos de prontidão e tirava postais que... nos enviaria pelo correio. Pagamos, ou antes, nossos acompanhantes pagaram. E as fotos chegaram!
No Brasil ele nao passaria, o mais das vezes, de um "vigarista importuno". No Japão, era um "pobre dos deuses". usan do sua inofensiva Ioucura para ganhar a vida honestamente.
"— Dômo!" — Com licença?* "— Dôzo." — Sim, por favor.

lunes, 9 de febrero de 2009

Procura-se: um engraxate

Os japoneses andam sempre com sapatos espelhados. Misterio! Não ha engraxates no Japão.
Ao fim de poucos dias, embora usando vigorosamente panos e escovas disponiveis nos quartos do hotel, sentia-me ve-xado com os meus. "Engraxate?" — a guia-interprete me perguntou, surpresa.



Era fim de tarde Batemos de taxi varias possibilidadcs. Numa viela dcscobrimos um, com longa fila de espera Nossa guia acabou parando numa loja de calçados. Entrou. Parlamen-tou. Chamou nos. Un dos vendedores engraxoi nossos sapatos" Quanto lhe devo?" O moço respondeu com uma reve-rencia a a nossa descortesia. Fiz-leh uma reverencia mais anen-tuada: "Arigato gozaimasu"

De uma segunda vez num canto de galeria de enorme pre-dio central de Tokyo, encontramos uma profissional. Tres pol-tronas em fila de espera no corridor externo. Mais tres fregue-ses de pé. No cubiculo de 1 x 2.5 m, a "engraxate-san" enver-gando uniforme azul-hospitalar e luvas-de-canhão de borracha cirurgica atendia os clientes'. Cronometramos: 45 segundos, 20o yens (US$ 1.25).

Começamos a calcular os lucros daquela mina de ouro. De repente. paramos, Quanto custariam para aquela micro-em-presaria a luva e o aluguel daquele espaço no centro de Tokyo?

sábado, 7 de febrero de 2009

Duplo efeito da comida nipônica

Farta, limpa, fresca, natural e saudavel e a comida niponi ca. Dos mais populares aos mais requintados restaurantes. Na maioria deles pode-se escolher nas vitrinas o que se vai comer e pagar. Os pratos são apresentados em rcproduçoes plasticas que sao obras-primas dc arte naturalista e honestidade, embo-ra em alguns (raros) os camaroes servidos fossem menores que os representados... Verduras, legumes, massas e peixes predominam. Usualmente, um prato e uma refeição farta. Em almoços e jantares dc cerimonia e quase impossivel dar conta da in finidade e variedade de coisas servidas em pequenas porçoes, em sucessão infindável. Pouco cozimento, pouca gordura, pou co tempero, requinte artistico na apresentação das formas e na combinação de cores. Os olhos comem antes da boca. Fre qüentemente se tem a sensação sacrilega de estar devorando a "natureza morta" de um grande pintor.

O resultado e duplo.

Nos trinta dias que estive no Japão não usei uma so vez pastilhas antiácidas, de que frequentemente me sirvo ao deitar. Minto: usei-as duas vezes quando jantei comida chinesa...
No fim da primeira scmana em Tokyo percebi. alarmado, que minha mulher cstava definhando. Cansada, entorpecida, sonolenta, ela que normaimente é tão ativa. Eram onze horas da noite. Tive um estalo! Sem dizer nada, fiz com que se arrumasse, vesti-me e arrastei-a pela feérica e turbulenta Ginza (principal avenida de Tokyo) onde acabei descobrindo um res-taurante-boate onde uma japonesa, em traje negro lantejoula-do, cantava em inglès perfeito os sucessos hollywoodianos ro manticos dos anos 60.. — e sentei-lhe um T-bone steak de 100 gramas que ajudei a acabar. No dia seguinte ela estava de novo lépida como um passarinho, acompanhando o ritmo de nosso anfitrião, Yamamoto Katsuzo, o que não e dizer pouco...

A comida é leve. Digere-se muito rapidamente. Daí em diante minha previdente mulher saía sempre com uma peque na sacola de frutas e petiscarias, para calçarmos o vazio entre as refeiçoes...

jueves, 5 de febrero de 2009

Assisto ao nascimento do Japão

Viagens são uma sucessão de acontecimentos. Uma coleção de episodios. Um dos mais ricos, gratos e emocionantes foi nosso encontro com o Shimotsuke no Daimyo Ten, exposi ção montada pelo museu de Utsonomiya para reconstituir a época dos daimyos (suseranos feudais) da região de Shimotsu-ke, hoje provincia de Tochigi.



No almoço que nos foi oferecido nesse museu por nossas magnificas anfitrias de Utsonomiya, seu diretor nos deu um catalogo da exposicão que — feliz coincidencia! — deveria ser inaugurada no dia seguintc, apos tres anos de prepare) e ao custo de 8 milhoes de yens (cerca de 64.000 dólares). Mais de cem localidades haviam fornecido perto de quatro mil peças, desde estátuas, pergamihos, espadas, selas e armaduras ate utensilios de cozinha, para se reconstituir a vida daquela época.

E impossivel dar coma da emocao que sentimos ao percorrer aquela exposição. É que, a par de sua riqueza e beleza deslumbrantes, percorremos ali ao vivo. o caminho que durante oito anos vinhamos fazendo nos livros, procurando comprender a formação historica e cultural do Japão. E ali estava ela. reconstituida concretamente, em suas peças autênticas, como se o passado do Japão viesse ao nosso encomtro a fim de confirmar as ideias que tinhamos a seu respeito. Pois foi nesse pe riodo (Azuchi-Momoyama, 1567-1600) que os tres grandes ca pitaes, Nobunaga, Hideyoshi e Tokugawa. realizaram a pacifica-çao e a união que, após mais de dois séculos de guerras feu-dais, integraria o país e Ihe daria 250 anos de paz. Era como se assistessemos ao nascimento do Japão!

I.a estavam estatuas originais dc Hideyoshi e Tokugawa. com que haviamos nos familiarizado nos livros. La estava o emakimono (pergaminho) original da decisiva batalha de Seki-gahara, que marca o inicio do periodo Edo (1600). Não correspondia a nenhuma das reproduçoes que conheci. Nenhuma fo-ra capaz de dar conta de seus detalhes, de suas cores, de sua graça, de sua vida. (Lembrei-me de idèntica sensação quando, em Londres, me deparei com originais de conhecidos desenhos de Toulouse-Lautrec: nenhuma reprodução capta a inspiração e a força criadora que o artista poe em seu trabalho e so o original conserva.)

Dei largas ao entusiasmo e a alegria proporcionados por aquele espetáculo. Me surpreendi muito com o fato de que todo 0 Japão não estivesse a par daquele acontecimento, restrito quase a provincia de Tochigi. Apenas um dos acontecimentos culturais que, na estação do outono, sc realizam naquele pais. (Alguns dias depois vamos encontrar em Kyoto exposição de igual pompa e riqueza sobrc "O Caminho da Seda".) Já no início de minha viagem, entretanto, sentia-me pago de todo o tempo e de todo esforco empregados para compreender o Japão: naquela exposição elevinha, magicamente, ao meu encontro.

domingo, 1 de febrero de 2009

Viagem simulada pela Tokkaidô

Os japoneses foram simpre grandes andarilhos. As excursões de primavera e outono, quando todos os anos escolares e colegiais percorrem o Japão acompanhados de seus mestres e mestras, reproduzem nas condicões de conforto moderno a velha tradição de peregrinações a lugares famosos. Visitas ao Fujuyama, ao santuário de Jse, a Kyoto e Nara continuam no programa de vida de todo japonês. Rodovias e ferovias modernas refazem o percurso das antigas e famosas estradas leu-dais do Japão — a Reigendo. a Seigendo e a mais famosa de hulas, a Tokkaidò, ligando Kyoto. a sede da corte, a Tokyo. a sede do Bakufu (centro do shogunato) a 500 quilômetros de distancia suas andanças por uma delas liashò deixara, em sua "A estreita senda de Oku", anotações poeticas de sua viagem. uma das mais he Ias coleções de ha i ku (haikai) do Japão.

De Toba a Ise. num moderno carro com ar-condicionado. nosso chofer de luvas brancas (como é comum no Japão) nos conduz e a Kumiko (nossa guia interprete) em excursão mara-vilhosa... O capim susuki, margeando a estrada, assinala eotn suas plumas de seda as primicias do outono...
Detemo-nos em Ise para rápida refeição em supermoderna lamchonete. A saída, o chofer confabula com a interprete. Esta nos oferecendo, por sua iniciativa e de seu bolso, entra das para uma exposição local.

Cruzamos a pequena praça. Entramos. E em vinte minutos refizemos a longa viagem que os suseranos de séculos passados empreendiam com numeroso séquito de vassalos, guerrei ros e servidores. em visita e estagio obrigatório em Edo, onde os shogun Tokugawa lhes impunham a permanencia de seis meses por ano. deixando de volta aos seus domínios sua fami lia em Edo, icomo refem de sua lealtade. Ao longo detelvez uns trinta metros de vitrinas quatro a cinco mil bonequinhos reproduziam, em paisagem miniaturizada , todas as cenas possíveis encontradas pela comitiva nessa viagem: as lavadeiras nos rios, as estalagens com seus fregueses, as casas de espetaculos, os pavilhoes de cha. rusgas armadas, festivais... que faltaria ali, rcpresentado em seus minimos detallies?

Porém, tanto quanto o encanto dessa simulada viagem pela Tokkaidô do passado. ficou conosco a surpresa — e a gratidao — da iniciativa daquele chofer, membro da grande familia japonesa que nos recebeu e partilhou com um estranho a satisfaçao de mostrar e ver o seu pais.